segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Devia morrer-se de outra maneira - José Gomes Ferreira


Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.

Ou em nuvens.

Quando nos sentíssemos cansados,

fartos do mesmo sol, a fingir de novo todas as manhãs,

convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite

para o ritual do Grande Desfazer:

"Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se

em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".

E então, solenemente, com passos de reter tempo,

fatos escuros,olhos de lua de cerimônia,

viríamos todos assistir à despedida.

Apertos de mãos quentes.

Ternura de calafrio.

"Adeus! Adeus!"

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,

numa lassidão de arrancar raízes...

primeiro, os olhos... em seguida, os lábios...

depois os cabelos... a carne, em vez de apodrecer,

começaria a transfigurar-se em fumo...

tão leve... tão subtil... tão pòlen...

como aquela nuvem além vêem?

Nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...


Escritor, poeta e ficcionista português, natural do Porto. Formou-se em Direito em 1924, tendo sido cônsul na Noruega entre 1925 e 1929. Após o seu regresso a Portugal, enveredou pela carreira jornalística. Foi colaborador de vários jornais e revistas. José Gomes Ferreira foi um representante do artista social e politicamente empenhado, nas suas reacções e revoltas face aos problemas e injustiças do mundo. Mas a sua poética acusa influências tão variadas quanto a do empenhamento neo-realista o saudosismo, numa dialéctica constante entre a irrealidade e a realidade, entre as suas tendências individualistas e a necessidade de partilhar o sofrimento dos outros. Da sua obra poética destacam-se, para além do volume de estreia, Lírios do Monte (1918), Poesia, Poesia II e Poesia III (1948, 1950 e 1961, respectivamente), recebendo este último o Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores. A sua obra poética foi reunida em 1977-1978, em Poeta Militante. O seu pendor jornalístico reflecte-se nos volumes de crónicas O Mundo dos Outros (1950) e O Irreal Quotidiano (1971). No campo da ficção escreveu O Mundo Desabitado (1960), Aventuras de João Sem Medo (1963), Imitação dos Dias (1966), Tempo Escandinavo (1969) e O Enigma da Árvore Enamorada (1980). O seu livro de reflexões e memórias A Memória das Palavras (1965) recebeu o Prémio da Casa da Imprensa. É ainda autor de ensaios sobre literatura, tendo organizado, com Carlos de Oliveira, a antologia Contos Tradicionais Portugueses (1958). Em Junho de 2000, foi lançada no porto a colectânea Recomeço Límpido, que inclui versos e prosas de dezenas de autores em homenagem a José Gomes Ferreira.

Um comentário:

Kat disse...

Não gosto muito desta temática.
Kat